Como ser um(a) grande cantor(a)

Resumo dos meus aprendizados no primeiro ano na Fábrica de Óperas da UNESP

Primeiro passo: Decorar a música

Decorar a música e estudá-la até que ela fique de cor. De coração. Como disse uma vez o Abel Rocha, que me serve de inspiração, estudar até essa música ser a sua favorita. Decorar.

Decorar significa cantar repetidas vezes a música, colocando som nela. Descobrindo cada notinha, como deve ser a emissão dela. Como soa. Fazer o som reverberar na cabeça inteira, sentir o apoio. E sentir aquela sensação maravilhosa de “estou arrasando”, de “esse som está me preenchendo, e isso me faz feliz. Tão feliz que me sinto confiante suficiente para me soltar e me expressar”.

Estudar lembrando da colcheia. Que, para fazer um fraseado expressivo, a dica é começar com o andamento da colcheia mais lento, acelerar no meio até chegar a palavra de destaque da frase, depois voltar ao andamento. SEM PERDER O TEMPO DA MÚSICA.  No princípio dá uma sensação de “Ai meu Deus! Não vai dar certo! Está tudo fora do tempo! Será que vou tomar bronca?”. Pessoas inseguras vão se identificar comigo. Pessoas que, possivelmente, buscam com tanta sede o conhecimento que, quando vêem algo incrível, têm vontade de sair pulando e abraçando todo mundo.

Mais uma dica de fraseado. Não basta entender somente o texto. Como fazer os degraus da música? Musicalmente, estruturalmente, às vezes o texto pede um crescendo e um legatto.  Sem medo de ser feliz. Basta fazer o crescendo, aumentar pouco a pouco a energia, usar as consoantes para fazer o legatto, e divar.

Como fazer para decorar a música sem perder os ritmos do acompanhamento?

Recebi uma dica maravilhosa do Andrey Ivanov, aluno de regência do Abel Rocha e que toca piano maravilhosamente: Mesmo que você não toque piano maravilhosamente, ao menos tocar o baixo da música e cantar sua linha, fazer um mapa da condução da música, para onde a melodia vai, por que vozes passa. Mesmo que as vozes sejam do próprio piano. Costurar isso tudo, nem que seja um “pananananã pausa pausa” na cabeça lembrando de um teminha no piano. Algo que faça sentido para você. Você não vai precisar entregar um trabalho de análise musical. O que vai ser visto é o produto final, e não o processo. Então se joga! Costura a música do seu jeito para facilitar a memorização.

A partir do momento que a música está de cor, muito provavelmente o sentido cênico dela já venha vindo na nossa mente. Então, vem o segundo passo.

Segundo passo: Entender o texto dessa obra.

É necessário ter o conhecimento do todo da obra, de entender para onde cada personagem vai, quem é o personagem principal, como é o status quo antes de haver um evento modificador na história, e como essa modificação altera efetivamente o caráter do personagem.  Pegando como base a minha última experiência deste ano:

Na Solteirona e o Ladrão, que é a que está mais fresca na cabeça, o status quo era o tédio que a Solteirona sentia. “Nossa… que tempo feio”. Quando as pessoas estão entediadas, a primeira coisa que elas falam, para puxar algum assunto, é sobre o tempo. O tempo é impessoal. Nunca ninguém vai se sentir ofendido por um comentário do tempo. (Eu acho, né? Tem doido pra tudo… hahaha!).

Então o status quo era o tédio e a tristeza de ser solteira e ter sido abandonada há 40 anos por um homem que queria “mais livros” para ler.

O evento modificador da peça foi o aparecimento do mendigo. E de que forma ele modifica o enredo da história?

A Solteirona fica interessada por ele, e a empregada dela, Letícia, também. E a empregada faz de tudo para que a Solteirona mantenha o mendigo em sua casa, porque “morrer por um homem pode ser melhor do que viver sem nenhum”.

A aparição do mendigo faz com que a protagonista mude completamente sua vida. Ela, que preside o comitê anti-álcool, que conhece cada um da cidade, se vê numa situação em que não tem outra saída a não ser roubar um bar, e roubar o dinheiro da Igreja. Tudo para provar o seu amor pelo mendigo. E, é claro, induzida pela empregada, Letícia, que se aproveita da fragilidade emocional da Solteirona para manipulá-la.

Este é um exemplo. O exemplo do que eu estudei no último semestre. O entendimento do enredo, do agente modificador, de como a história é movimentada através dele, vai fazer todo o estudo de canto se adaptar e complementar este novo conhecimento.

Terceiro passo: Criar o corpo cênico.

Eu, Érica, funciono muito bem com exercícios de corpo. Exercícios de vetores. Para onde vai o movimento ? De onde parte o movimento? Dos ombros, para frente? Dos ossinhos do quadril?  Como é o andar dessa personagem? Como ela pensa? No que ela pensa enquanto não está cantando?

Decorar a marcação da cena é outra das atividades que nos cabe fazer sozinhos em casa. E SIGNIFICAR cada uma das movimentações.  Na ópera anterior que fiz, a Flauta Mágica, que eu achava bastante difícil a coreografia, eu literalmente desenhei quadro a quadro, no paint brush mesmo, toda a movimentação da personagem. “Quando o Tamino falar isso, eu vou para a esquerda”. 

Depois de tudo isso desenhado, é o momento de SIGNIFICAR a movimentação. Por que será que eu vou para a esquerda? Por que essa personagem iria para a esquerda? Inventar uma razão particular faz parte do bom trabalho de cada ator.

Vale pontuar aqui o JOGO. Sua personagem age como quando está sozinha? E quando estar com o fulano? E o ciclano? Por mais que, possivelmente, não exista um momento de diálogo interno, é interessante saber como é a personalidade dela. E saber “o que ela pensa a respeito dos outros”,  “como é a relação dela com os outros”. Isso te faz criar o jogo em cena, e faz o público entender quem é a personagem.

Ainda não falei aqui da limpeza e clareza de movimentos. Procurar fazer uma ação de cada vez ao invés de se agitar, por mais que o momento seja agitado. Isso facilita a pontuar os momentos já encontrados na interpretação anteriormente.

Quarto passo: Rezar para tudo dar certo na hora! Hahaha!

Brincadeiras à parte, manter o espírito calmo é importantíssimo. Depois de tanto estudar, de entender, de tudo isso já estar natural para você, é o momento de se deixar levar, relaxar e curtir a cena. Essa foi uma dica do meu colega Vicente Sampaio, barítono magnífico, e ele me deu essa dica momentos antes de eu entrar em cena, quando eu estava basicamente desesperada, chorando e borrando toda a maquiagem!

Quinto passo: Não acredite em limitações. Elas mentem! Hahaha! (Estou piadista hoje!)

Às vezes pode acontecer de a sua gana por acertar te faça dar ouvidos demais aos outros, sem filtrar. Não que deliberadamente um colega vá denegrir o seu trabalho (esperamos que não, né gente? XD), mas às vezes a ansiedade que a gente sente é tanta que um simples toque de “você poderia fazer melhor arredondando sua voz” pode te fazer sentir a pior pessoa do mundo.

O SONHO É SEU. Só atinge o sonho quem vai em busca dele. Use a força do seu medo para alavancar sua carreira!

2 comentários em “Como ser um(a) grande cantor(a)”

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